Por maioria de votos, o
Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente o pedido contido
na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada na
Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), para
declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção
da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128,
incisos I e II, todos do Código Penal. Ficaram vencidos os ministros Ricardo
Lewandowski e Cezar Peluso, que julgaram a ADPF improcedente.
Relator
vota pela possibilidade da interrupção de gravidez de feto anencéfalo.
O relator da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ministro Marco
Aurélio, votou, nesta terça-feira (11), pela possibilidade legal de interromper
gravidez de feto anencéfalo. O ministro considerou procedente o pedido feito
pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), para declarar
inconstitucional a interpretação dada aos artigos 124, 126 e 128 (incisos I e
II) do Código Penal que criminaliza a antecipação terapêutica de parto nos
casos de anencefalia.
“A
incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por
poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento
dos direitos básicos da mulher”, afirmou o ministro, ao sustentar a
descriminalização da prática. Para ele, é inadmissível que o direito à vida de
um feto que não tem chances de sobreviver prevaleça em detrimento das garantias
à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à
privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe, todas
previstas na Constituição.
Em voto
longo e baseado nas informações colhidas durante quatro dias de audiência
pública realizada pelo STF para debater o tema, o ministro Marco Aurélio
concluiu que a imposição estatal da manutenção de gravidez cujo resultado final
será a morte do feto vai de encontro aos princípios basilares do sistema
constitucional. Para ele, obrigar a mulher a manter esse tipo de gestação
significa colocá-la em uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”,
deixando-a desprovida do mínimo essencial de autodeterminação, o que se
assemelha à tortura.
“Cabe à
mulher, e não ao Estado, sopesar valores e sentimentos de ordem estritamente
privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez”, afirmou,
acrescentando estar em jogo a privacidade, a autonomia e a dignidade humana
dessas mulheres, direitos fundamentais que devem ser respeitados. Na
interpretação do ministro, ao Estado cabe o dever de informar e prestar apoio
médico e psicológico à paciente antes e depois da decisão, independente de qual
seja ela, o que hoje é perfeitamente viável no Brasil.
Direito à
vida.
Em seu voto,
o ministro Marco Aurélio sustentou que na ADPF 54 não se discute a
descriminalização do aborto, já que existe uma clara distinção entre este e a
antecipação de parto no caso de anencefalia. “Aborto é crime contra a vida.
Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida
possível”, frisou. A anencefalia, que pressupõe a ausência parcial ou total do
cérebro, é doença congênita letal, para a qual não há cura e tampouco
possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica em momento posterior. “O
anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em
potencial, mas de morte segura”, afirmou o ministro.
Nesse
sentido, no entendimento do relator, não há que se falar em direito à vida ou
garantias do indivíduo quando se trata de um ser natimorto, com possibilidade
quase nula de sobreviver por mais de 24 horas, principalmente quando do outro
lado estão em jogo os direitos da mulher. Dados apresentados na audiência
pública demonstram que a manutenção da gravidez nesses casos impõe graves
riscos para a saúde da mãe, assim como consequências psicológicas severas e
irreparáveis para toda a família.
Código Penal
Em relação
ao fato de não haver menção no Código Penal aos casos de anencefalia como
quesito autorizador de interrupção de gravidez, o ministro Marco Aurélio
argumentou que nas décadas de 30 e 40, quando foi editado o Código Penal hoje
vigente, a medicina não possuía os recursos técnicos necessários para
identificar previamente esse tipo de anomalia fetal. “Mesmo à falta de previsão
expressa no Código Penal de 1940, parece-me lógico que o feto sem
potencialidade de vida não pode ser tutelado pelo tipo penal que protege a
vida”, afirmou.
Além disso,
ele lembrou que, naquela época, o legislador, para proteger a honra mental e a
saúde da mulher, estabeleceu que o aborto em gestação oriunda do estupro não
seria crime, situação em que o feto é plenamente viável. “Se a proteção ao feto
saudável é passível de ponderação com direitos da mulher, com maior razão o é
eventual proteção dada ao feto anencéfalo”, ponderou.
Estado laico
Ao proferir
seu voto, o ministro reforçou ainda o caráter laico do Estado brasileiro,
previsto desde a Carta Magna de 1891, quando da transição do Império à
República. “A questão posta nesse processo – inconstitucionalidade da interpretação
segundo a qual configura crime a interrupção de gravidez de feto anencéfalo -
não pode ser examinada sob os influxos de orientações morais religiosas”,
frisou.
Assim como
ocorreu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510 -
sobre possibilidade de realização das pesquisas científicas com células-tronco
embrionárias, em que o STF primou pela laicidade do Estado - para o ministro,
as concepções morais e religiosas não podem guiar as decisões estatais, devendo
ficar circunscritas à esfera privada. “O Estado não é religioso, tampouco é
ateu. O Estado é simplesmente neutro”, concluiu.
Doação de
órgãos
Ao sustentar
seu entendimento, o ministro Marco Aurélio também afastou a premissa utilizada
em prol da defesa do anencéfalo de que os seus órgãos poderiam ser doados.
Segundo ele, além de ser vedada a manutenção de uma gravidez somente para
viabilizar a doação de órgãos, essa possibilidade é praticamente impossível no
caso de anencefalia, pois o feto terá outras anomalias que inviabilizariam a
prática. Obrigar a mulher a manter a gravidez apenas com esse propósito, para o
relator, seria tratá-la a partir de uma perspectiva utilitarista, de instrumento
de geração de órgãos para doação, o que também fere o princípio da dignidade da
pessoa humana.
Dados
Até o ano de
2005, os juízes e Tribunais de Justiça formalizaram cerca de 3 mil autorizações
para interromper gestações em decorrência da impossibilidade de sobrevivência
do feto, o que demonstra, segundo constatou o ministro Marco Aurélio, a
necessidade de o STF se pronunciar sobre o tema. Conforme mencionou no início
de seu voto, o Brasil é o quarto país do mundo em casos de fetos anencéfalos,
ficando atrás do Chile, México e Paraguai. A incidência é de aproximadamente um
em cada mil nascimentos, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS),
obtidos entre 1993 e 1998 e citados pelo relator no voto.
MC/AD
Ministros
Rosa Weber e Joaquim Barbosa seguem o relator e julgam procedente a ADPF 54
A ministra
Rosa Weber acompanhou o voto do relator da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 54, ministro Marco Aurélio, também defendendo a
exclusão da interrupção ou antecipação do parto de feto anencéfalo do rol dos
crimes contra a vida, conforme previsto nos artigos 124 e 126 do Código Penal
(CP). Por isso, julgou procedente a ação, ajuizada pela Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Saúde (CNTS).
Logo após o
voto da ministra, votou no mesmo sentido o ministro Joaquim Barbosa, ao pedir a
juntada, com algumas modificações, do voto por ele elaborado sobre esta matéria
na análise do Habeas Corpus (HC) 84025.
Liberdade da
gestante
Em seu voto,
a ministra Rosa Weber sustentou que, para o direito, o que está em jogo, no
caso, não é o direito do feto anencefálico à vida, já que, de acordo com o
conceito de vida do Conselho Federal de Medicina (CFM), jamais terá condições
de desenvolver uma vida com a capacidade psíquica, física e afetiva inata ao
ser humano, pois não terá atividade cerebral que o qualifique como tal. O que
está em jogo, portanto, segundo ela, é o direito da mãe de escolher se ela quer
levar adiante uma gestação cujo fruto nascerá morto ou morrerá em curto espaço
de tempo após o parto, sem desenvolver qualquer atividade cerebral, física,
psíquica ou afetiva, própria do ser humano.
Embora, em
seu voto, a ministra sustentasse a relatividade dos conceitos da ciência sobre
o que é vida e sobre a aplicabilidade dos conceitos e paradigmas da ciência às
demais áreas da vida humana, em virtude de sua mutabilidade, ela se reportou,
em seu voto, à Resolução nº 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, que
estabeleceu como parâmetro para diagnosticar a morte de uma pessoa a ausência
de atividade motora em virtude da morte cerebral, isto é, a certeza de que o
indivíduo não apresentará mais capacidade cerebral. Este é, segundo a ministra, “um critério
claro, seguro e garantido” que pode ser aplicado, por analogia, ao feto
anencefálico.
“A gestante
deve ficar livre para optar sobre o futuro de sua gestação do feto anencéfalo”,
sustentou a ministra Rosa Weber. “Todos os caminhos, a meu juízo, conduzem à
preservação da autonomia da gestante para escolher sobre a interrupção da
gestação de fetos anencéfalos”, sustentou ainda a ministra.
“A postura
contrária, a meu juízo, não se mostra sustentável, em nenhuma dessas
perspectivas e à luz dos princípios maiores dos direitos, como o da dignidade
da pessoa humana, consagrada em nossa Carta Maior, no seu artigo 1º, inciso
III”, afirmou ela.
“Diante do
exposto, voto pela procedência da presente ação, para dar interpretação
conforme aos artigos 124 e 126 do Código
Penal, excluindo, por incompatível com a nossa Lei Maior, a interpretação que
entende a interrupção ou antecipação do parto, em caso de anencefalia
comprovada, como crime de aborto”, concluiu a ministra.
FK/AD
Ministro Luiz Fux vota para autorizar
interrupção da gravidez de fetos anencéfalos
O ministro
do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux foi o quarto a votar na sessão
Plenária desta quarta-feira (19) a favor da possibilidade da interrupção da
gravidez de fetos anencéfalos. “Impedir a interrupção da gravidez sob ameaça
penal efetivamente equivale a uma tortura, vedada pela Constituição Federal”,
disse.
A questão
está sendo debatida na Corte no julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF 54) ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde (CNTS). O objetivo da entidade é que seja declarada
inconstitucional qualquer intepretação do Código Penal no sentido de
criminalizar a antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos.
Com base em
inúmeros estudos e dados científicos, o ministro Luiz Fux afirmou ser possível
chegar a “três conclusões lastimáveis” sobre a gestação de anencéfalos: que a
expectativa de vida deles fora do útero é absolutamente efêmera, que o
diagnóstico de anencefalia pode ser feito com razoável índice de precisão e que
as perspectivas de cura da deficiência na formação do tubo neural são
absolutamente inexistentes nos dias de hoje.
Diante
dessas conclusões, o ministro ressaltou a importância de se proteger a saúde
física e psíquica da gestante, dois componentes da dignidade humana da mulher.
Ele desafiou a possiblidade de qualquer pessoa comprovar, à luz do princípio da
razoabilidade e da proporcionalidade, que é justo relegar a gestante de um feto
anencéfalo aos “bancos de um tribunal de júri” para responder penalmente por
aborto.
“Por que punir essa mulher que já padece de uma tragédia humana?”,
questionou.
Para Luiz
Fux, esse intuito punitivo que não só não se coaduna com a sociedade moderna,
como está desconectado “da necessidade de se reservar para o direito penal
apenas aquelas situações realmente aviltantes para a vida em comunidade”. O
ministro enquadrou a interrupção da gravidez de fetos anencefálicos como
matéria de saúde pública que aflige, em sua maioria, mulheres de menor poder
aquisitivo, sendo, portanto, uma questão a ser tratada como política de
assistência social.
Segundo ele,
é importante dar à gestante “todo apoio necessário em uma situação tão
lastimável” e não punir com uma repressão penal destituída de qualquer
fundamento razoável. “(Esta hipótese) seria, no meu modo de ver, o punir pelo
punir, como se o direito penal fosse a panaceia de todos os problemas sociais.”
No início de
seu voto, que durou cerca de uma hora, o ministro Luiz Fux registrou a
definição de anencefalia dada pelo National Institute of Neurological Disorders
and Stroke (NINDS), entidade norte-americana. O NINDS define a malformação como
um defeito do tubo neural do feto, assim, crianças com essa disfunção nascem
sem a porção anterior do cérebro e a área responsável pelo pensamento e pela
coordenação.
O ministro
disse que a parte remanescente do cérebro dessas crianças fica exposta e, em
geral, os bebês anencéfalos são cegos, surdos, inconscientes e incapazes de
sentir dor. Ele registrou ainda que, apesar de alguns deles viverem minutos, a
falta de um cérebro em funcionamento permanente descarta completamente a
possibilidade de qualquer ganho de consciência. “Se o infante não é natimorto,
falece horas após o nascimento”, disse.
O ministro
Luiz Fux também destacou que não discutiria em seu voto qual a vida mais
importante: se a da mulher ou a do feto. “Não me sinto confortável para fazer
essa ponderação”, disse. Ele explicou que o debate é alvo de “significativo
dissenso moral” e que, por isso mesmo, impõe uma postura “minimalista do
Judiciário”, adstrita à questão da criminalização ou não da interrupção da
gravidez de fetos anencéfalos. “No meu modo de ver, seria extremamente
prematuro que o STF buscasse solucionar, como se legislador fosse, todas as
premissas de um intenso debate que apenas se inicia na nossa sociedade, fruto
do pluralismo que a caracteriza”, ponderou.
RR/AD
Para ministra Cármen Lúcia,
interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não configura crime
A ministra
Cármen Lúcia Antunes Rocha se uniu aos votos dos ministros que a antecederam,
pela procedência do pedido feito na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 54, que teve o julgamento iniciado na tarde desta
quarta-feira (11), pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Em seu
voto, a ministra manifestou-se favorável quanto à possibilidade de interrupção
da gravidez de fetos anencéfalos.
Segundo a
ministra, todos – tanto as contribuições dadas durante a audiência pública
realizada sobre o tema, bem como os ministros da Corte – estão preocupados com
o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, “com a visão que cada um tem
de mundo e da própria vida”. Ela avaliou que essa situação reflete o momento
democrático brasileiro, “de pluralidade e de respeito absoluto pelas opiniões
contrárias, o qual precisa ser dito exatamente na perspectiva constitucional”.
A ministra
frisou que o Supremo não está decidindo nem permitindo a introdução do aborto
no Brasil, menos ainda a possibilidade de aborto em virtude de qualquer
deformação. Para ela, essa é uma questão posta à sociedade e o STF está
tratando, fundamentalmente, de saber qual interpretação que deve ser dada aos
dispositivos do Código Penal no sentido de se considerar crime ou não a
interrupção de gravidez de feto anencéfalo.
“Estamos
discutindo o direito à vida, à liberdade e à responsabilidade”, ressaltou
Cármen Lúcia. “Estamos deliberando sobre a possibilidade jurídica de uma pessoa
ou de um médico ajudar uma mulher que esteja grávida de um feto anencéfalo, a
fim de ter a liberdade de fazer a escolha sobre qual é o melhor caminho a ser
seguido, quer continuando quer não continuando com essa gravidez”, explicou.
Dignidade da
vida
O voto da
ministra Cármen Lúcia foi fundamentado no direito à dignidade da vida e no
direito à saúde. “Todas as opções, mesmo essa interrupção, são de dor. A
escolha é qual a menor dor, não é de não doer porque a dor do viver já
aconteceu, a dor do morrer também”, disse a ministra, destacando que, para ela,
a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não é criminalizável para que
seja preservada a dignidade da vida “que é o que a Constituição assegura como o
princípio fundamental do constitucionalismo contemporâneo”.
Ela lembrou,
ainda, que “o pai também sofre barbaramente” e precisa ser levado em
consideração na sua dignidade, assim como toda a família. Por essa razão, a
ministra salientou que quando se fala em dignidade, todos estão envolvidos: a
mãe, o pai e os irmãos mais velhos, os quais têm expectativas no nascimento do
bebê.
Sociedade
democrática
“Não há bem
jurídico a ser tutelado como sobrevalor pela norma penal que possa justificar a
impossibilidade total de a mulher fazer a escolha sobre a interrupção da
gravidez, até porque talvez a maior indicação de fragilidade humana seja o medo
e a vergonha”, ressaltou a ministra Cármen Lúcia. De acordo com ela, a mulher
que não pode interromper a gravidez de feto anencéfalo “tem medo do que vai
acontecer, medo físico, psíquico e de vir a ser punida penalmente por uma
conduta que ela venha a adotar”.
A ministra
frisou que nada fragiliza mais o ser humano do que o medo e a vergonha. Segundo
ela, em um das cartas enviadas aos ministros, uma mulher contou que durante
cinco meses de gravidez, após ter descoberto a anencefalia do seu feto, não
saía mais de casa porque em toda fila, até mesmo na do banco, perguntavam
quando o bebê ia nascer, qual o nome da criança e o que a mãe pensava para o
filho, mas ela não podia responder. “Portanto, ela passou cinco meses dentro de
casa se escondendo por vergonha de não ter escolhas numa sociedade que se diz
democrática, com possibilidade de garantir liberdade para todos”, observou a
ministra.
“Considero
que na democracia a vida impõe respeito. Neste caso, o feto não tem perspectiva
de vida e, de toda sorte, há outras vidas que dependem, exatamente, da decisão
que possa ser tomada livremente por esta família [mãe, pai] no sentido de
garantir a continuidade livre de uma vida digna”, concluiu a ministra Cármen
Lúcia.
EC/AD
Interrupção
de gestação de anencéfalos: ministro Lewandowski abre divergência
Sexto a
votar no julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, o ministro Ricardo
Lewandowski divergiu do relator, ministro Marco Aurélio, e votou pela
improcedência do pedido formulado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Saúde (CNTS) de que o STF fixe entendimento para que a antecipação
terapêutica de feto anencefálico não configure crime. Com sua manifestação, o
julgamento conta com cinco votos pela procedência da ADPF e um contra, até o
momento.
Usurpação de
poderes
O voto do
ministro Lewandowski seguiu duas linhas de raciocínio. Na primeira, ele
destacou os limites objetivos do controle de constitucionalidade das leis e da
chamada interpretação conforme a Constituição, com base na independência e
harmonia entre os Poderes. “O STF, à semelhança das demais cortes
constitucionais, só pode exercer o papel de legislador negativo, cabendo a
função de extirpar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com a
Constituição", afirmou. Mesmo este papel, segundo seu voto, deve ser
exercido com “cerimoniosa parcimônia”, diante do risco de usurpação de poderes
atribuídos constitucionalmente aos integrantes do Congresso Nacional. “Não é
dado aos integrantes do Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto
popular, promover inovações no ordenamento normativo como se fossem
parlamentares eleitos”, ressaltou.
Nesse
aspecto, o ministro observou que o Congresso Nacional, “se assim o desejasse”,
poderia ter alterado a legislação para incluir os anencéfalos nos casos em que
o aborto não é criminalizado, mas até hoje não o fez. O tema, assinalou, é
extremamente controvertido, e ambos os lados defendem suas posições com base na
dignidade da pessoa humana. “Nosso parlamento se encontra profundamente
dividido, refletindo, aliás, a abissal cisão da própria sociedade brasileira em
torno da matéria”, disse, acrescentando que pelo menos dois projetos de lei
sobre o tema tramitam desde 2004 sem que se tenha chegado a consenso.
Ampliação
das possibilidades
O segundo
ponto enfatizado pelo ministro Lewandowski foi a possibilidade de que uma
decisão favorável ao aborto de fetos anencéfalos torne lícita a interrupção da
gestação de embriões com diversas outras patologias que resultem em pouca ou nenhuma
perspectiva de vida extrauterina. Citando dados da Organização Mundial de Saúde
(OMS) sobre malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas,
Lewandowski ressaltou que existem dezenas de patologias fetais em que as
chances de sobrevivência são nulas ou muito pequenas – como acardia (ausência
de coração), agenesia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal e
outras.
Para o
ministro, uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores
de anencefalia, “ao arrepio da legislação penal vigente”, além de “discutível
do ponto de vista ético, jurídico e científico”, abriria a possibilidade de
interrupção da gestação de inúmeros outros casos. “Sem lei devidamente aprovada
pelo parlamento, que regule o tema com minúcias, precedida de amplo debate
público, provavelmente retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que
se lançavam para a morte, do alto de uma rocha, as crianças consideradas fracas
ou debilitadas”, afirmou.
Finalmente,
o voto destaca a existência de diversos dispositivos legais em vigor que
resguardam a vida intrauterina – sobretudo o Código Civil, que, no artigo 2º,
estabelece que a lei ponha a salvo, “desde a concepção”, os direitos do
nascituro. Tais normas, segundo Lewandowski, também teriam de ser consideradas
inconstitucionais ou merecer interpretação conforme a Constituição.
CF/AD
ADPF 54 é julgada procedente pelo
ministro Gilmar Mendes.
O ministro
Gilmar Mendes foi o sétimo a votar pela procedência da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, em análise pelo Plenário do
Supremo Tribunal Federal (STF). Ele considerou a interrupção da gravidez de
feto anencefálo como hipótese de aborto, mas entende que essa situação está
compreendida como causa de excludente de ilicitude, já prevista no Código
Penal, por ser comprovado que a gestação de feto anencefálo é perigosa à saúde
da gestante.
No entanto,
o ministro ressalvou ser indispensável que as autoridades competentes
regulamentem de forma adequada, com normas de organização e procedimento, o
reconhecimento da anencefalia a fim de “conferir segurança ao diagnóstico dessa
espécie”. Enquanto pendente de regulamentação, disse o ministro, "a
anencefalia deverá ser atestada por, no mínimo, dois laudos com diagnósticos
produzidos por médicos distintos e segundo técnicas de exames atuais e
suficientemente seguras”.
Apesar de
entender que a regra do Código Penal é a vedação do aborto, o ministro Gilmar
Mendes avaliou que a hipótese específica de aborto de fetos anencéfalos está
compreendida entre as excludentes de ilicitude, estabelecidas pelo Código
Penal. Ele citou que, conforme a legislação brasileira, o aborto não é punido
em duas situações: quando não há outro meio de salvar a vida da mãe (aborto
necessário ou terapêutico) e quando a gravidez é resultante de estupro, caso em
que se requer o consentimento da gestante, porque a intenção é proteger a saúde
psíquica dela.
“Todavia,
era inimaginável para o legislador de 1940 [ano da edição do Código Penal], em
razão das próprias limitações tecnológicas existentes”, disse. Com o avanço das
técnicas de diagnóstico, prosseguiu o ministro, “tornou-se comum e
relativamente simples descobrir a anencefalia fetal, de modo que a não inclusão
na legislação penal dessa hipótese de excludente de ilicitude pode ser
considerada uma omissão legislativa, não condizente com o Código Penal e com a
própria Constituição”.
De acordo
com o ministro, a inconstitucionalidade da omissão legislativa está na ofensa à
integridade física e psíquica da mulher, bem como na violação ao seu direito de
privacidade e intimidade, aliados à ofensa à autonomia da vontade. “Competirá
[como na hipótese do aborto de feto resultante de estupro] a cada gestante, de
posse do seu diagnóstico de anencefalia fetal, decidir que caminho seguir”,
ressaltou. Por essa razão, o ministro destacou a necessidade de o Estado
disciplinar, “com todo zelo, a questão relativa ao diagnóstico de anencefalia
fetal, visto que ele é condição necessária à realização deste tipo de aborto”.
Assim, o
ministro Gilmar Mendes votou pela procedência da ADPF 54 por entender que não
se deve punir aborto praticado por médico, com sentimento da gestante, se o
feto é anencefalo. Até o momento, também votaram desse modo os ministros Marco
Aurélio (relator), Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia Antunes
Rocha e Ayres Britto.
Prevenção à
anencefalia
Conforme o
ministro Gilmar Mendes, o Brasil já possui medidas que priorizam a prevenção e
não apenas a repressão da interrupção da gravidez. Ele contou que o Ministério
da Saúde homologou resolução do Plenário do Conselho Nacional de Saúde na qual
se atribui ao próprio ministério a responsabilidade de promover ações que visem
à prevenção de anencefalia, disponibilizando ácido fólico na rede básica de
saúde para acesso de todas as mulheres no período pré-gestacional e
gestacional, além de garantir a inclusão de ácido fólico nos insumos
alimentícios.
EC/AD
Decano vota pela descriminalização da
interrupção de gravidez de feto anencefálico.
Oitavo
ministro a se pronunciar pela possibilidade da interrupção, por desejo da mãe,
do parto em caso de gestação de feto anencefálico, o decano do Supremo Tribunal
Federal, ministro Celso de Mello, julgou procedente a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) 54, ajuizada na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Saúde (CNTS).
“Julgo
integralmente procedente a ação, para confirmar o pleno direito da mulher
gestante de interromper a gravidez de feto comprovadamente portador de
anencefalia, dando interpretação conforme a Constituição Federal aos
artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos
I e II, todos do Código Penal, para que, sem redução de texto, seja declarada a
inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes (para todos) e efeito
vinculante, de qualquer outra interpretação que obste a realização voluntária
de antecipação terapêutica de parto de
feto anencefálico”.
Ele
condicionou, entretanto, esta interrupção da gravidez a que “esta malformação
fetal seja diagnostica e comprovadamente identificada por profissional médico
legalmente habilitado”, reconhecendo à
gestante “o direito de submeter-se a tal procedimento, sem necessidade de
prévia obtenção de autorização judicial ou permissão outorgada por qualquer
outro órgão do Estado”, afirmou o ministro, ao concluir seu voto.
Em seu voto,
ele endossou proposta do ministro Gilmar Mendes no sentido de que seja
solicitada ao Ministério da Saúde e ao Conselho Federal de Medicina a adoção de
medidas que possam viabilizar a adoção desse procedimento.
Direito da
mulher
Após lembrar
que a Suprema Corte julga o caso imparcialmente, ancorada na própria
Constituição Federal (CF), nos tratados internacionais sobre direitos humanos,
particularmente da mulher, de que o Brasil é signatário, bem como na legislação
ordinária do país, o ministro disse que a Corte não estava impondo nada, mas
reconhecendo pleno direito à mulher de escolher o caminho a seguir, em casos de
anencefalia, inclusive o de conduzir a gravidez até o fim.
“O STF, no
estágio em que já se acha este julgamento, está a reconhecer que a mulher,
apoiada em razões fundadas nos seus direitos reprodutivos e protegida pela
eficácia incontrastável dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa
humana, da liberdade, da autodeterminação pessoal e da intimidade, tem o
direito insuprimível de optar pela antecipação terapêutica de parto nos casos
de comprovada malformação fetal por anencefalia; ou então, legitimada por
razões que decorrem de sua autonomia privada, o direito de manifestar sua
liberdade individual, em clima da absoluta liberdade, pelo prosseguimento
natural do processo fisiológico de gestação”, observou ele.
Importância
Ao iniciar
seu voto, o ministro Celso de Mello disse que, em quase 44 anos de atuação na
área jurídica, nunca participou de um julgamento de tamanha magnitude,
envolvendo o alcance da vida e da morte. Posteriormente, ele considerou este
julgamento e o da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510 (pesquisa com
células tronco embrionárias), relatada pelo ministro Ayres Britto, dos “mais
importantes julgamentos que o Supremo Tribunal Federal já realizou, em toda a
histórica republicana”.
Aborto
“Nós não
estamos autorizando práticas abortivas, legitimando a prática do aborto”, disse
o ministro, observando que “esta é outra
questão que poderá ser submetida à apreciação desta Corte, em outro momento,
mas não é o caso”. Ele fez questão de afirmar que há uma grande diferença entre
legalização do aborto e a antecipação terapêutica do parto em caso de
anencefalia.
Em seu voto,
ele lembrou que há diversos conceitos de vida, sobre seu início e fim, e que a
Constituição não define quando ela se inicia. Lembrou, inclusive, que na
Assembleia Nacional Constituinte foram apresentadas diversas emendas definindo
o início da vida humana a partir do momento da concepção, mas elas foram todas
rejeitadas.
Entretanto,
o ministro Celso de Mello mencionou a palestra de um médico durante a audiência
pública de 2008 que antecedeu o julgamento desta ADPF, segundo o qual o
critério deve ser o mesmo previsto na Lei 9.434/97 (que trata da remoção de
órgãos, partes e tecidos para fins de transplante) e na Resolução 1.752/97 do
Conselho Federal de Medicina (CFM), que consideram morto um ser humano quando
cessa completamente sua atividade cerebral, ou seja, a morte encefálica. Por
analogia, segundo ele, o feto anencéfalo não é um ser humano vivo, porque não
tem cérebro e nunca vai desenvolver atividade cerebral.
Portanto,
sequer haveria tipicidade de crime contra a vida na interrupção antecipada de
tal parto. “Se não há vida a ser protegida, não há tipicidade”, sustentou.
Ainda em seu
voto, o ministro citou depoimentos dados na audiência pública sobre o caso, por
médicos especialistas, segundo os quais há um elevado índice de mortalidade das
mulheres com gravidez de feto anencefálico, bem como de transtornos
psiquiátricos.
FK/AD
Ministro Cezar Peluso julga
improcedente a ADPF 54.
Último a
votar, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cezar Peluso,
manifestou-se pela total improcedência da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 54, que discute a possibilidade de interrupção da
gestação de fetos anencéfalos. O ministro frisou a “diferença abissal” entre
este caso e a discussão sobre o uso de células tronco embrionárias em
pesquisas. De acordo com o ministro, no caso dos embriões não havia processo
vital – ao contrário do feto anencéfalo, o qual, em seu entendimento, é
portador de vida e, portanto, tem de ter seus direitos tutelados.
“O
anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque está vivo”, assinalou. O ministro
lembrou, ainda, que a questão dos anencéfalos tem de ser tratada com “cautela
redobrada”, diante da imprecisão do conceito, das dificuldades do diagnóstico e
dos dissensos em torno da matéria.
Do ponto de
vista jurídico, o presidente do STF afirmou que, para que o aborto possa ser
considerado crime, basta a eliminação da vida, “abstraída toda especulação
quanto à sua viabilidade futura ou extrauterina”. Nesse sentido, o aborto do
feto anencéfalo é “conduta vedada de forma frontal pela ordem jurídica”. O
princípio da legalidade e a cláusula geral da liberdade “são limitados pela
existência das leis”, e, nos casos tipificados como crime, não há, a seu ver,
espaço de liberdade jurídica.
Os apelos
para a liberdade e autonomia pessoais são “de todo inócuos” e “atentam contra a
própria ideia de um mundo diverso e plural”. A discriminação que reduz o feto
“à condição de lixo”, a seu ver, “em nada difere do racismo, do sexismo e do
especismo”. Todos esses casos retratam, de acordo com o voto, “a absurda defesa
e absolvição da superioridade de alguns sobre outros”.
Competência
do Legislativo
Ao encerrar
seu voto, o presidente do STF ressaltou ainda que não cabe ao STF atuar como
legislador positivo, e que o Legislativo não incluiu o caso dos anencéfalos nas
hipóteses que, no artigo 124 do Código Penal, autorizam o aborto. “Se o
Congresso não o fez, parece legítimo que setores da sociedade lhe demandem
atualização legislativa, mediante atos lícitos de pressão”, afirmou. “Não temos
legitimidade para criar, judicialmente, esta hipótese legal. A ADPF não pode
ser transformada em panaceia que franqueie ao STF a prerrogativa de resolver
todas as questões cruciais da vida nacional”.
Para o
ministro Peluso, a ADPF ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Saúde representa “uma tentativa de contornar a má vontade” do Legislativo em
regulamentar a questão. “É o Congresso Nacional que não quer assumir essa
responsabilidade, e tem motivos para fazê-lo”, concluiu.
CF/AD
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