O TSE ameaça a ficha limpa.
Sem fazer barulho, Tribunal
Superior Eleitoral libera candidatura de político que teve as contas de sua
gestão rejeitadas. A decisão atinge a alma da lei da ficha limpa e cria
jurisprudência que pode beneficiar dez mil candidatos barrados
Izabelle Torres e
Josie Jerônimo
Considerada o caminho mais
curto para livrar a política brasileira dos maus gestores e de gente acostumada
a se apropriar de dinheiro público, a lei da ficha limpa começou a valer este
ano, mas, na semana passada, uma resolução sem muito alarde do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) colocou sua aplicação sob ameaça. O TSE decidiu que o
fato de um administrador ter as contas de sua gestão rejeitadas não é motivo
para impedi-lo de ser candidato. Os ministros entenderam que a inelegibilidade
somente pode ser declarada se houver provas suficientes de que o político teve
culpa pelos desvios ou falhas no uso de recursos públicos.
A decisão que atingiu a alma
de uma das mais populares leis brasileiras foi tomada durante a análise da ação
que impugnou a candidatura do vereador de Foz do Iguaçu, Valdir de Souza
Maninho, por ordenamento irregular de despesas quando ele era secretário de
Esportes do município. O TSE liberou o candidato alegando que o Tribunal de
Contas não comprovou sua culpa. O mais paradoxal é que a jurisprudência criada
prejudica a execução da ficha limpa no exato momento em que o próprio TSE
investe mais de um milhão de reais em campanhas no rádio e na televisão em
defesa da lei.
A interpretação abre uma
brecha que pode beneficiar cerca de dez mil candidatos barrados com base no
artigo da lei que exige a aprovação de contas durante gestões anteriores. “Foi
aberto um flanco destrutivo na lei e isso partiu de quem menos se esperava: do
próprio tribunal. A decisão dos ministros terá um efeito danoso porque a
rejeição de contas é o principal item da norma, é o coração dela”, reclama o
juiz eleitoral Marlon Reis, um dos maiores articuladores da lei da ficha limpa.
No Rio Grande do Norte, por exemplo, nada menos do que 95% dos candidatos
barrados podem se livrar dos processos.
“Os ministros dilaceraram o
papel e a importância das decisões dos órgãos de controle”, comenta o
procurador do Rio Grande do Norte, Carlos Thompson. Em outros Estados,
como Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo, as falhas na aplicação de
recursos públicos são responsáveis por mais da metade dos pedidos de
indeferimentos de candidaturas.
A lista de casos que guardam
semelhanças à do vereador de Foz do Iguaçu é extensa e inclui especialmente
prefeitos que tentam reeleição e ex-prefeitos em busca de um novo mandato. Em todo País, não faltam
exemplos de quem agora têm boas chances de obter sucesso nos recursos ou até de
inibir ações de opositores que insistam em falar desses processos.
O senador Cícero Lucena
(PSDB-PB), por exemplo, enfrenta a reação de adversários na disputa pela
prefeitura de João Pessoa, que tentam impugnar sua candidatura no TSE com base
em duas condenações do Tribunal de Contas da União referentes à gestão na
capital paraibana. Problemas semelhantes enfrentam outros integrantes do
Congresso Nacional. O deputado federal Oziel Oliveira (PDT-BA) tenta voltar ao
comando da pequena Luís Eduardo Magalhães, apesar de ainda responder por
irregularidades em um convênio assinado em 2004, quando era prefeito. Mesmo
condenado pelo TCU, o deputado federal José Vieira (PR-MA) também disputa a
prefeitura de Bacabal.
Um dos entraves à aplicação
da lei da ficha limpa é que, ao exigir provas sobre a culpa dos gestores no mau
uso de recursos públicos, o TSE entende que caberia aos Tribunais de Contas
avançarem nas análises técnicas e nas argumentações jurídicas a ponto de
produzirem provas, o que não é uma prerrogativa desses tribunais. Além disso, o
TSE provoca insegurança jurídica ao dar argumentos aos políticos ficha suja a
recorrer da condenação. Em
alguns Estados, esses recursos podem anular completamente os
efeitos da ficha limpa, uma vez que quase a totalidade dos pedidos de
impugnação foi feita com base em pareceres técnicos de Tribunais de Contas.
Em resposta às reações
contrárias, o TSE alega apenas que a exigência de provas mostrando a culpa dos
gestores está prevista na própria lei. Para o ministro Arnaldo Versiani, quando
a decisão do Tribunal de Contas não menciona a existência de dolo, “merece
prevalecer o direito à elegibilidade”. “O problema é que esse argumento não
leva em conta o fato de que esses tribunais fazem apenas a análise técnica”,
contrapõe o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcanti.
Essa não é a única decisão do
TSE comemorada por políticos encurralados pela Justiça. Em junho, os ministros
determinaram que a rejeição das prestações de contas de campanhas eleitorais
anteriores não é motivo de impugnação de candidaturas.
A decisão dividiu a Corte e foi
desempatada pelo ministro Dias Toffoli. O próprio Arnaldo Versiani foi
criticado por ter definido que a responsabilidade por julgar a legalidade dos
gastos dos prefeitos é das Câmaras Municipais e não dos Tribunais de Contas.
O ministro ignorou o fato de
que esses julgamentos, quando feitos por vereadores, se baseiam em critérios
políticos e negociações partidárias. Práticas que, como tantas outras, poderiam
ser expurgadas do País, não fossem decisões que colocam em risco os avanços da
democracia.
Por: Adecio Piran