quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Papa defende o uso da ‘camisinha’ em ‘certos casos’.

Tony Gentile/Reuters
Uma das características da Igreja Católica, como se sabe, é a aversão a mudanças. Isso vem desde sempre, atravessa a história. No começo do século 16, a igreja preferiu emagrecer, expelindo fiéis, a atualizar-se. Surgiram numerosas igrejas cristãs dissidentes.

Pior: rendido às vicissitudes da vida, os católicos, em perfeita paz e excelsa glória, passaram a praticar a religião à sua maneira. Colocaram a consciência acima das determinações do Vaticano. Selecionaram os dogmas que desejam seguir. E fecharam os olhos para pontos cruciais da doutrina da Igreja.Há católicos que admitem do uso de camisinha ao casamento informal, longe do altar. A maioria dá de ombros para a ideia de que a mulher tem de casar virgem. Em países como o Brasil, a Igreja é reformada na prática cotidiana dos fiéis. A mudança ocorre num lugar onde o olho do papa não chega: a alma dos católicos.

Vive-se uma santa farsa: a Igreja finge que controla o rebanho e as ovelhas fingem que são controladas. Sob esse contexto de hipocrisia, surgiu uma novidade. Chegou nas páginas de um livro. Coisa a ser lançada na próxima terça (23).

Reúne 20 horas de entrevistas do papa Bento 16 a um jornalista alemão: Peter Seewald. Questionado sobre o veto da Igreja aos preservativos, o papa disse: "Com certeza [a Igreja] não vê [o preservativo] como uma solução real e moral". Na sequência, Bento 16 flexibilizou o verbo:

"Em certos casos, quando a intenção é reduzir o risco de infecção, pode ser, no entanto, um primeiro passo para abrir o caminho a uma sexualidade mais humana". Como exemplo, Bento 16 citou uma prostituta que, ao usar o preservativo para se proteger, estaria dando "o primeiro passo para uma moralização".

Até aqui, a proibição do Vaticano aos métodos contraceptivos era geral e irrestrita. Admitia-se apenas a abstinência sexual. Ignorava-se até a Aids. Para entender o tamanho do passo ensaiado pelo papa, vale recuar aos séculos 17 e 18. Vivia-se o auge da chamada Revolução Científica.

Era uma época de poucas certezas. Proliferavam, por exemplo, as dúvidas quanto ao processo de concepção humana. Recorra-se, por oportuno, à portuguesa Clara Pinto-Correia. Professora de biologia, ela é autora de “O Ovário de Eva” (Editora Campos, 1999).

O livro relata as tentativas do homem de entender “o mistério dos mistérios”, na definição dos gregos. Conta que consolidaram-se duas correntes. Ambas partiam de um mesmo pressuposto: o de que Deus, ao criar o Universo, acomodara as gerações de seres humanos dentro de seus futuros pais.

Assim, Adão e Eva traziam enterrados dentro de si espécies de cápsulas contendo Caim e Abel. Morto Abel, Caim se encarregou de trazer à vida o ser que lhe fora reservado, e assim sucessivamente.

O que dividia os antigos estudiosos era a discussão sobre onde estariam, afinal, os seres programados pelo Todo Poderoso, se no ovário ou nos testículos. Dependendo das teses que abraçassem, os contendores eram classificados como “ovistas” ou “espermistas”.

Seguida de perto pela Igreja, a contenda percorreria caminhos hilários. O lado espermista não sabia como classificar o sêmen. Uns diziam que era suor. Outros, que era saliva. Ou leite. Ou sangue. Houve até quem dissesse que o espermatozóide era um animal.

A suposição de que um único animalzinho bastava para deflagrar o processo de concepção levou a uma nova polêmica: milhões de potenciais seres humanos estariam sendo desperdiçados a cada relação sexual.

Estuda daqui, debate dali chegou-se à conclusão de que Deus não aprovaria tamanho derramamento de sêmen. A Igreja, afinal, sempre condenara a masturbação. A própria Bíblia dá conta, em Gênesis (38:4-10), da desaprovação do Senhor ao gesto de Onan que, ao deitar-se com a cunhada, interrompia o coito na hora “h”, derramando o sêmen sobre o solo.

A coisa se complicou quando alguns médicos começaram a prescrever a masturbação como forma de purificar o organismo das vítimas de excessivo desejo sexual. Piorou ainda mais no instante em que um monge espanhol, Juan Caramuel, teve a audácia de dar curso à idéia de que aliviar o corpo dos excessos de sêmen era prática médica saudável. Pagou com uma condenação pública do papa Inocêncio 11º, em 1679.

As posições da Igreja e as dúvidas suscitadas pelas teses “espermistas” estimularam a condenação mais aberta e franca da masturbação. Em 1715, um panfleto anônimo despejado sobre Londres classificava a polução como vício hediondo. Além de atentar contra a natureza, retardaria o desenvolvimento físico de meninas e meninos.

Nas pegadas da polêmica, o Grande Dicionário Universal de Pierre Larousse definiria assim, no século 19, o verbete “marturbação”: “Não nos cabe descrever um ato infelizmente tão conhecido e tão vergonhoso”.

Hoje, já se sabe que fim levou o debate sobre a concepção. Esclarecido o processo que dá origem aos bebês, discute-se agora algo tão sofisticado quanto a possibilidade de interferir no destino do ser humano a partir de manipulações feitas no seu DNA.

Sabe-se também que, por inócuas, as teses acerca da masturbação perderam-se no tempo. De concreto, restou uma percepção definitiva: em suas incursões pelo campo da moralidade, a Igreja flerta com o ridículo. O mesmo ocorre agora em relação ao homossexualismo e à Aids.

Chega-se ao requinte de reprimir padres que, à frente de obras sociais que prestam assistência a doentes de Aids, se arriscam a defender a distribuição gratuita de camisinhas.

Ora, ao opor-se ao uso da camisinha, em nome de uma utópica castidade cristã, o clero não se limita a roçar o hilário. Coloca-se ao lado da morte, afrontando um dos dez mandamentos sagrados.

Submetido à evolução retórica de Bento 16, o Padre Eterno deve estar gritando: “Alvíssaras!”


Escrito por Josias de Souza

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