‘Fast food’
regional marca a viagem na maior linha férrea de passageiros do país, uma das
duas únicas em operação.
HENRIQUE
GOMES BATISTA
Mulheres
aproveitam parada de dois minutos do trem, em pequenas localidades do Meio
Norte, para vender quentinhas aos passageiros
DOMINGOS PEIXOTO / AGÊNCIA
O GLOBO
PARAUAPEBAS (PA) e SÃO
LUÍS (MA)
— Para
muitos, falar em viagem de trem gera nostalgia, a lembrança de um tempo em que
os vagões eram sinônimos de charme, elegância e conforto. Para outros, o trem
remete à modernidade, com os novíssimos trens-bala que cortam o Primeiro Mundo.
Mas a maior linha férrea de passageiros do país está longe destes dois padrões.
O serviço de 892 quilômetros, que conduz cerca de mil pessoas por dia entre o
Maranhão e o Pará, é popular. Popular, porém eficiente e, diferentemente dos
trens de outrora e das novidades de alta velocidade, com a cara do Brasil.
Afinal, em que outro local se pode comer um fast food de tatu por R$ 5?
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No terceiro
dia da série “O Brasil que não viaja de avião”, O GLOBO embarcou no trem
operado pela Vale desde 1985, onde a maior parte dos passageiros prefere as
“bandecas”, como são conhecidos os PFs e as quentinhas na região. Sobretudo as
pessoas que vão na classe econômica — o trem tem duas categorias de serviço,
primeira e segunda classes. Isso porque o serviço das “bandequeiras” é mais
barato que a refeição no vagão-lanchonete, onde um prato não sai por menos de
R$ 8.
E as “bandecas” têm o sabor do Meio Norte: muitas são de peixe amazônico,
algumas são de frango e mesclam arroz com macarrão, como é hábito regional. Mas
o chamariz de muitas delas é a saborosa carne de tatu, muito apreciada na
região.
Toda a transação é muito dinâmica, as pessoas só têm três minutos para
comprar sua comida, o tempo que o trem fica nas paradas mais curtas.
Passageiros
sonham com trem até São Paulo
Esse
movimento intenso contrasta com a organização de uma empresa do porte da Vale,
que leva sua experiência para o trem. As “bandequeiras” fazem lembrar que essa
linha rasga uma das regiões mais pobres do país. Mas não é apenas na comida que
isso fica evidente. As carências da população dessas localidades são percebidas
antes do embarque. Leudi Ramos Pinto, que foi de Parauapebas (PA) para José
Doca (MA), é um exemplo. Com sete meses de gravidez, ela voltava para casa após
visitar os pais.
— Quero ter
meu filho na minha cidade. Eu ainda não sei o sexo, ainda não bati o ultrassom.
Ela teve de
enfrentar o desconforto de passar uma noite em claro em frente à estação de
trem, pois sairia caro fazer duas viagens entre a casa de seu pai e a estação:
uma para comprar o bilhete e outra, no dia seguinte, para embarcar.
— Mas eu não
ligo de esperar, eu fico é alegre, por saber que vou voltar pra casa. Fico
pensando nisso e o tempo passa rapidinho — afirmou Leudi acompanhada do filho
Wesley, de quatro anos, e na companhia de dezenas de outras pessoas na estação,
algo que se repete diariamente.
Há quem
aproveite essas madrugadas na estação para faturar. Miguel Caetano de Souza, de
61 anos, vende laranja descascada a R$ 0,50, pedaço de bolo a R$ 1, caldo de
carne, frango ou camarão a R$ 2, espetinho de carne a R$ 3 e espetinho de carne
com arroz e farofa a R$ 5 em Parauapebas.
— Aqui é
bom, mas depende do dia. Tem dia que dá R$ 250, mas venho sempre, não posso
brincar, tenho que honrar todo mês um aluguel de R$ 200, não é mole — afirmou,
desanimado, após uma noite não muito boa, onde a única mercadoria que esgotou
foram as laranjas.
Para essas
pessoas, pagar R$ 45 para percorrer os 892 quilômetros em 16 horas é muito
melhor, mais rápido e barato que ir de ônibus — cuja passagem pode sair por até
R$ 130, mais caro que o trem na classe executiva, R$ 90. Os dez vagões da área
econômica não têm ar-condicionado, mas contam com algo fundamental: segurança.
— Aqui no
trem eu vou estudando, aproveitando o meu tempo, tenho segurança.
Nunca poderia
ir com o laptop no ônibus, chama muita atenção. Aqui eu não corro risco. Além
disso, a Vale tem que garantir a nossa chegada. Se for de ônibus e ele quebrar,
ficamos na mão. Aqui não, a Vale tem que dar um outro transporte.
Já aconteceu
comigo, e eles terminaram nossa viagem de ônibus — afirmou a professora de
História Maria dos Reis, que seguia de Açailândia para Buriticu.
Ela não
sente falta da classe executiva. Mas o representante comercial Dorivan Bento
Soares, de 64 anos, sempre paga o dobro do valor da econômica para ir nos dois
vagões diferenciados:
— Tem
ar-condicionado, menos confusão. Não me levanto nem para pedir comida.
Em geral,
quem ocupa essas poltronas exclusivas são os funcionários da Vale.
A empresa
afirma que mantém o serviço por uma questão de responsabilidade social, embora
esteja obrigada, por contrato, desde a sua privatização, a manter esta linha e
a outra, entre Belo Horizonte e Vitória, justamente as duas únicas em operação
para passageiros de longa distância no país. Sem revelar os números, a Vale
afirma que não tem prejuízo com a operação.
Não há voos
entre as duas cidades. Mas, se houvesse, não haveria muita demanda:
— Nunca
voei. Tenho receio. Meu irmão mora em São Paulo e me convidou para ir lá assim,
mas não tive coragem. O que eu queria é visitá-lo de trem, mas sei que isso não
existe — disse a dona de casa Fabiana Costa Pereira, que voltava de uma vista
aos pais em Marabá com a filha Maria Eloá, de 3 anos.
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