Delegado da PF é acusado de matar indígena no Mato Grosso
POR RUY SPOSATI
Viu as dragas e as balsas pegando fogo, enquanto sobrevoava o rio
Teles Pires. Uma bomba passa ao lado do avião, à direita. No campo de
visão de V., não havia indígenas.
O bimotor desce – a pista de pouso não fora destruída. Havia rastros
de sangue no chão, marcas de bala nos telhados e nas paredes. Espalhados
pelo caminho, restos de cartuchos, munições e carcaças de bombas. Todas
as casas estavam com as portas arrombadas.
E então a comunidade começa a sair e ir ao encontro de V.. Estavam
todos escondidos nas casas, assustados com a chegada do avião. Reúnem-se
no barracão e explicam à liderança Munduruku do que tinham medo.
V. ouve, então, os relatos de uma série de pessoas baleadas,
machucadas, queimadas, ainda afetadas pelo spray de pimenta. Uma mãe
chorava desesperadamente: sua filha de cinco anos estava desaparecida.
Achava que poderia estar morta, pois havia se perdido dela na mata.
Havia uma mulher com o rosto inchado por causa de um soco que o policial
lhe deu. Os professores não-índios que trabalham na comunidade também
foram agredidos.
V. ouve, então, os relatos de uma série de pessoas baleadas,
machucadas, queimadas, ainda afetadas pelo spray de pimenta. Uma mãe
chorava desesperadamente: sua filha de cinco anos estava desaparecida.
Achava que poderia estar morta, pois havia se perdido dela na mata.
Havia uma mulher com o rosto inchado por causa de um soco que o policial
lhe deu. Os professores não-índios que trabalham na comunidade também
foram agredidos. Todas as embarcações foram explodidas ou fuziladas e
afundadas. Os barcos de pesca foram danificados ou destruídos. As armas
de caça, quebradas ou levadas. Dinheiro e ouro foram roubados.
Computadores – entre eles, da saúde e das escolas – foram inutilizados. A
escola foi alvejada por tiros e bombas nas paredes e telhado. Celulares
e câmeras foram tomados, esmigalhados, jogados no rio ou tiveram seus
cartões de memória apreendidos. Os motores de popa da saúde foram
lançados ao rio. Fiações do telefone comunitário foram cortadas e o
rádio da aldeia confiscado, impedindo qualquer contato de indígenas com
outras aldeias. O carro da aldeia foi carbonizado.
V. chegara na aldeia em 8 de novembro, um dia depois de uma
comunidade de indígenas Munduruku, Kayabi e Apiaká, em Jacareacanga, no
Pará, divisa do estado do Pará com o Mato Grosso, ter sofrido um
violento ataque da Polícia Federal.
Neste mesmo dia, uma comissão especial do Poder Legislativo esteve no
local para apurar as denúncias que haviam chegado à cidade. No
relatório da visita, o presidente da Câmara Municipal de Jacareacanga,
Elias Freire (PSDB), afirmou haver "indícios de vários crimes praticados
pela força policial inclusive com exposição de vulneráveis, o que
contraria disposições legais do Estatuto da Criança e do Adolescente". O
vereador Raimundo Santiago (PT), o Raimundinho do PT, mostrou-se "pasmo
com a violência praticada contra os indígenas" e disse que "as imagens
que viu comprovam sobejamente que ocorreu crime contra o povo da aldeia
Teles Pires".
Minutos antes dos indígenas contarem a V. o que havia acontecido, um
Munduruku havia sido encontrado boiando no rio Teles Pires. Era o corpo
inchado de Adenilson Kirixi Munduruku. Ele havia sido assassinado no dia
anterior, 7 de novembro, durante a ação policial.
7 de novembro
Na manhã daquele dia, 400 botas pularam de três helicópteros
camuflados e de voadeiras alugadas de ribeirinhos, espalhando-se
estrategicamente pelo território indígena, amassando as formigas da
aldeia Teles Pires.
Era a Polícia Federal (PF) e a Força Nacional de Segurança,
acompanhados da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), executando manobras da Operação
Eldorado, uma mega ação de desmantelamento de esquemas de garimpagem
ilegal nos estados de Mato Grosso, Pará, Rondônia, Amazonas, São Paulo,
Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Chegaram 244 anos depois do vigário
José Monteiro de Noronha ter anotado pela primeira vez em seu
caderninho, em 1768, a presença dos primeiros Munduruku – chamados por
ele de de “Maturucu” – às margens do rio Maués, no hoje estado do
Amazonas.
Depois do pouso, E. M. e um grupo de lideranças saíram à procura de
representantes da Funai e do chefe da operação para conversar. Só
encontraram o delegado da Polícia Federal, Antônio Carlos Moriel
Sanches, que, segundo as lideranças, reponsável pela intervenção. "O
delegado falou que não tinha conversa com autoridade, com indígena,
tinha que fazer o que foram fazer", conta E. M.. "Uma liderança
[indígena] telefonou para Brasília, e de lá falaram que era pra avisar o
delegado que não fizesse nada até que alguém de Brasília chegasse lá".
"Nessa hora, só estava a Polícia Federal. O pessoal da Funai e do
Ibama estavam juntos com os policiais, sobrevoando em dois helicópteros e
deixando os policiais em locais estratégicos para invadir a aldeia",
assinala E. M..
"O delegado começou a empurrar as lideranças. Eu também fui
empurrado. O delegado disse que não tinha conversa com ninguém, nem com
cacique nem com liderança". Nesse momento, segundo E. M., estavam
presentes as lideranças, caciques, seguranças de caciques, mulheres e
crianças.
"Foi quando o delegado tirou o revólver para atirar na liderança que
ele empurrou. Foi nessa hora que o segurança do cacique empurrou o braço
do delegado, que escorregou e caiu na água, porque ali era um declive e
chão é liso", explica.
Foi então que a Polícia Federal abriu fogo contra os indígenas. "Os
dois primeiros tiros contra a vítima foram dados pelo delegado, que
ainda estava dentro d'água, com a água pela cintura. Vários policiais
começaram a atirar contra os indígenas".
Segundo os relatos, três tiros acertaram as pernas da vítima
Adenilson Kirixi, que perdeu o equilíbrio e caiu na água, sem conseguir
se levantar novamente. "Nessa hora, o delegado deu um tiro na cabeça do
Adenilson, que caiu morta e afundou no rio". Segundo os indígenas, o
delegado foi resgatado pelos policiais e levado para cima da draga. "Aí
os policiais jogaram uma bomba no Adenilson, quando o corpo já estava
afundando no rio".
Quando os indígenas tentaram resgatar o corpo do parente, foram
alvejados pelos policiais que estavam em terra. "Eles diziam que não era
para pegarmos o corpo. Do helicóptero, a polícia atirava e jogava
bombas de efeito moral na aldeia, no meio de todo mundo, com as
mulheres, as crianças", relata.
Procurada pelo Blog do Amazônia, a Polícia Federal
não quis se manifestar sobre as acusações. Segundo a assessoria de
comunicação, talvez a PF e a Funai se manifestem conjuntamente sobre o
caso nos próximos dias.
Meu irmão
G. K. era irmão de Adenilson. "Quando ouvi o tiroteio, fui correndo
para a beira do rio. Estavam dizendo que meu tio tinha morrido. Eu
queria saber se era verdade. Os policiais jogaram bomba e spray de
pimenta. Meu olho ardeu e eu fiquei sem rumo".
O indígena relata que um terceiro helicóptero teria chegado nesse
momento, com mais policiais. Foi quando ele saiu correndo em direção à
mata, perseguido pela PF. "Me escondi embaixo das árvores, ouvindo o
barulho das bombas, dos helicópteros e dos tiros. Tinha mais gente
escondida lá também", relembra. Três horas depois, G. K. volta à aldeia e
insiste em apurar informações sobre a morte do irmão.
"Os policiais me diziam que não tinha ninguém morto, que os feridos
estavam no hospital. Meu irmão não estava lá". O Munduruku encontrou,
então, o servidor da Funai, Paulão – os indígenas não sabem de onde veio
-, que acompanhava a Operação. Ele também lhe negara ter havido alguma
morte.
Segundo todos os relatos, Paulão teria sido o servidor da Funai responsável pelo acompanhamento da Operação.
O laudo cadavérico realizado pela Polícia Civil do Mato Grosso (veja)
confirmou que Adenilson Kirixi levou três tiros na pernas e um tiro
frontal na cabeça. Nao há informaçao se houve apreensão e perícia na
arma que efetuou – ou nas armas que efetuaram – os tiros.
Parte dos indígenas fugiram para a mata, parte para as reisdências,
imaginando que ali estariam seguros. Durante a fuga, dois indígenas
foram gravemente feridos pelos policiais. E. M. e O. K. estão
hospitalizados em Cuiabá. Outros indígenas também foram levados para o
hospital. O pelotão, então, invadiu a aldeia, arrombando portas e
janelas, jogando bombas dentro dos domilícios "Levaram tudo o que tinha
dentro das casas, nossos facões, facas, espingarda de caça", atesta.
"Chutaram meu pai"
"Eu vi os tiros e saí correndo pra pedir socorro no rádio e na
internet. "Quem estava no rádio comigo ouvia os tiros", conta I. W.. "O
meu pai chegou onde eu estava, ferido. Tinha levado um tiro de bala de
borracha. A gente saiu começou a gritar pra eles pararem de atirar, mas
eles não pararam", relata I. W.. "Corriam atrás da gente e atiravam.
Atiraram na mulher do meu irmão, que está grávida de 8 meses. Atiravam
com bala de borracha e com bala de verdade também".
"Então entramos de novo em casa, com mais umas dez pessoas. A polícia
arrombou a porta e entrou jogando bombas de gás lacrimogêneo na gente.
Tinha uma mulher com um bebê de dois meses lá dentro". Segundo I.W., os
policiais mandaram todos saírem da casa e colocarem as mãos na cabeça.
"Chutaram o meu pai e agrediram todos os homens que estavam ali. Eu
dizia pra eles que a gente não era bandido pra ser tratado daquele
jeito".
Segundo I. W., aos homens – também idosos e crianças – foi ordenado
que deitassem no chão com as mãos na cabeça, enquanto as mulheres e
crianças foram mantidas como reféns, separadamente, no campo, com armas
apontadas para elas. "As mulheres e crianças ficaram o dia inteiro
debaixo do sol, com os policiais armados em volta. A gente pediu comida,
mas não deram. Não deixavam a gente falar a nossa língua, só
português". "Eu gritava, e o policial me perguntou se eu estava com
raiva. Eu respondi que sim, porque estavam invadindo a aldeia e as
casas. Os policiais disseram que tinham um mandado judicial e que só
estavam cumprindo sua obrigação. Eu perguntei pra eles se o juíz também
tinha autorizado que eles invadissem as casas e agredissem as pessoas".
"Arrombaram o posto de saúde, jogaram uma bomba de gás e apontaram
uma arma para a cabeça da técnica de enfermagem, L. R.. Jogaram os
remédios no chão e quebraram os medicamentos. Também atiraram na escola,
jogaram bombas e quebraram as telhas", relata. I. W. chorou muito ao
contar esta história.
"O tiroteio durou 30 minutos. Parecia filme de guerra. Quando pararam
de atirar, um grupo de policiais saiu em busca do corpo que havia
afundado no rio, enquanto outros recolhiam cascas de munição e bombas
que encontravam pela frente", relembra E. M.. "A gente ficou cercado
pelos policiais. Levaram o nosso rádio. Destruíram o motor que gerava
energia para a aldeia".
Os índios feridos foram levados de helicóptero para atendimento no
Hospital Regional de Alta Floresta, em estado grave. Segundo as
lideranças indígenas, ainda estão internados. Os agentes da PF receberam
atendimento no local.
E. M. relata as prisões posteriores ao ataque. "Eles levaram 17
pessoas para a fazenda Brascan, onde havia uma base da polícia", conta. O
irmão de E. M. também havia sido preso. Uma indígena que acompanhava o
irmão que havia sido preso, também foi levada. Eles foram enviados a
Sinop, no Mato Grosso – a aldeia fica em Jacareacanga – e depuseram à
polícia. Os depoimentos teriam sido acompanhados por um Procurador da
Funai de Cuiabá cujo nome não souberam dizer. Posteriormente, foram
levados de volta à aldeia pela polícia.
Foi no final da operação, ainda no dia 7, que as dragas e balsas
foram destruídas. Segundo os indígenas, cada uma das onze embarcações
destruídas no leito do rio tinham de 30 a 40 mil litros de combustível,
além de baterias. Eles relatam que os peixes estão morrendo e que não
podem usar o rio, agora contaminado pelos fluídos.
Segundo os indígenas, a polícia permaneceu nas proximidades por mais três dias.
Os professores e profissionais de saúde não-índios não querem voltar
para a aldeia. Os alunos não querem ir às aulas. A comunidade possui
cerca de 500 pessoas, contando com mais duas aglomerações, a dos Kayabi e
a dos Apiaká, que também dependem da estrutura de Teles Pires.
Blitzkrieg bop
No dia 6, W. U. conta que indígenas Kayabi compartilharam pelo rádio a
informação de que helicópteros estavam sobrevoando suas terras.
"Achávamos que eles estavam vindo pra se reunir com a gente", relata.
Contudo, segundo W. U., o que estava acontecendo ali era a construção
das bases da Operação Eldorado. A primeira fora construída na Fazenda
Brascan, localizada no Vale Ximari, em Apiacás (MT), a dez quilômetros
da comunidade Kayabi. A segunda base da Operação foi montada a um
quilômetro da aldeia, no igarapé Buretama. Foi neste local, "onde há
apenas um morador", que um grupo de guerreiros Munduruku foi ter com os
policiais para entender o que estava acontecendo.
Quando os indígenas encontraram os policiais, eles estavam evacuando
uma das balsas que seria destruída. "Perguntamos o que eles iriam fazer.
Eles disseram que não queriam conversa, que vieram fechar o garimpo e
explodir as dragas, que tinham uma ordem judicial pra isso". Os
indígenas pediram para ver o mandado que autorizava a Operação, e
insistiram sobre a necessidade de uma reunião entre a polícia e as
lideranças. "Explicamos que o garimpo era o nosso sustento, que não
poderiam fechar assim. Trouxemos o documento do acordo com a Funai sobre
o garimpo", explica. "Aí começou o desentendimento. Um policial quebrou
uma flecha e deu um empurrão num cacique de uma aldeia próxima. Eles
falaram pra gente tirar o que a gente quisesse da draga, porque a draga
ia ser explodida, e assim foi feito". Segundo W. U., os indígenas
retornaram à aldeia para contar ao cacique e outras lideranças que a
polícia estava na área e havia destruído uma das embarcações. Os
policiais suspenderiam a destruição e só voltariam no dia seguinte.
W. U. foi atingido por bombas e está com marcas de queimadura no corpo.
Segundo todos os relatos, a Força Nacional de Segurança não se
envolveu nos momentos de violência da Operação. A Polícia Federal em
Mato Grosso decidiu suspender temporariamente a Operação. O MPF do Mato
Grosso e do Pará abriram investigação sobre o caso.
Por que mataram Adenilson Munduruku?
E a vida corria bem seu curso para os Munduruku, desde quando
Karosakaybu (1) os criara, na aldeia Wakopadi, nas cabeceiras do rio
Krepori. E então os pariwat (2) chegaram; para nós, era o século XVIII,
com nossas frentes colonizadoras. As coisas nunca são as mesmas, e ali,
definitivamente, nunca mais foram as mesmas para os Munduruku.
Os Munduruku, hoje, totalizam pouco mais de 11 mil pessoas,
espalhadas em áreas indígenas reivindicadas, demarcadas ou homologadas. A
difícil localização e situação de quase isolamento das comunidades –
num cenário de pressão das espoliações para a exploração exógena de suas
terras e riquezas – os colocaram, ao longo da história, em contextos
complexos de conflito com a sociedade envolvente.
Um exemplo disso foi o episódio ocorrido em julho deste ano. Um
Munduruku foi barbaramente assasinado com 21 facadas e pauladas que
destruíram seu rosto. O corpo da vítima foi encontrado por um morador
jogado em um terreno baldio, próximo à residência do pai. À época, dois
dos quatro suspeitos de serem autores do crime foram deixados em
liberdade pela polícia civil. A falta de investigação e providências das
autoridades foi o estopim para que, enfurecidos, os indígenas cercassem
a delegacia da Polícia Civil de Jacareacanga exigindo que a polícia
permitisse que eles fizessem justiça com as próprias mãos. A delegacia
foi depedrada e incendiada pelos Munduruku – a cidade, sitiada.
Em 2002, a situação do garimpo nas terras indígenas estava
calamitosa. Centenas de garimpeiros trabalhavam clandestinamente, viviam
dentro das terras indígenas e traziam consigo toda uma cadeia
extremamente perversa que orbitava a atividade. Exploração de mão de
obra, dominação, drogas e prostituição eram algumas delas. Foi então que
os Munduruku também tiveram de começar a resolver as coisas com as
próprias mãos, e retiveram os garimpeiros e funcionários da Funai para
pressionar o órgão a realizar um acordo que desaguasse numa operação de
retirada dos mineradores da área.
"Sabemos perfeitamente que o garimpo, além de ilegal, é ruim para o
nosso rio e para a nossa gente", explica V.. "Acontece que essa foi a
única forma que encontramos para sobreviver nos últimos tempos", expõe.
"Mas nós sempre quisemos acabar com os garimpos".
E então V. apresenta um documento ao qual ainda não foi dada nenhuma
publicidade por parte do governo, e que confirma a vontade dos indígenas
em terminar com os garimpos. Um ofício registrou uma reunião que
ocorrera entre indígenas Munduruku, Kayabi e Apiaká e diversas
coordenações da Funai regional e nacional, junto ao MPF-PA, em setembro
de 2005, onde os indígenas apresentaram propostas para a substituição do
garimpo por um projeto de desenvolvimento e geração de renda para a
comunidade. Como alternativa à extração do ouro, os indígenas exigiam
suporte para implantar e consolidar projetos de "produção de artesanato,
produção de mel de abelhas, piscicultura, avicultura, implatação de
casa de farinha e agricultura (consórcio de culturas). Dentre essas
propostas, a mais discutida e que os índios priorizaram foi a de
produção de artesanato (…). Quando o índio vai caçar, pega sementes,
cipó e vigia a área", relatava o ofício, protocolado nas quatro
instituições.
"Façamos"
"Com esses projetos, gradativamente iríamos acabar com o garimpo. Só
que esse eles nunca saíram do papel", expõe V.. Então, as comunidades
começaram a interferir diretamente na extração ilegal, no sentido de
reduzir os impactos causados pela atividade. "Morria muito branco,
índio, tinha tráfico de drogas e a Funai não tomava nenhuma providência.
E a gente continuava escravo do garimpo. Então nós mesmos tomamos
providências". V. relata, então, que os próprios indígenas estabeleceram
com os garimpeiros novas regras sobre como se daria o trabalho na área.
Proibiram os garimpeiros de portarem armas, levarem bebidas e
comercializarem drogas, entre outras coisas. Colocaram placas pela
comunidade, para que todos que entrassem informassem o que iriam fazer
ali. Em 2010, sob o conhecimento da Funai e do Ibama – e portanto dos
ministérios da Justiça e Meio Ambiente – estas regras tornariam-se um
"Acordo de parceria para atividade de mineração" entre indígenas Kayabi e
os proprietários das balsas.
Com o dinheiro do garimpo, os Munduruku mantinham uma casa de apoio
em Jacareacanga. Garantiam a geração de energia para a aldeia. "Os
alunos que estudam fora eram mantidos com o dinheiro da mensalidade do
garimpo, e tudo o que era comprado [com esse dinheiro] é de toda a
comunidade. A manutenção de equipamentos das aldeias vem daí. Quem
trabalha dentro da aldeia também recebia daí".
Além das comunidades receberem um pagamento mensal dos proprietários
das balsas pela exploração do rio, alguns indígenas trabalham
diretamente na mineração. Outros vendem produtos como farinha de puba,
polvilho, tapioca, futas, pecados e artesanatos. "Hoje, depois do que
aconteceu, nós simplesmente não temos condições de nos manter", lamenta
V..
V. explica
Embora considere injusta, V. poderia ao menos compreender uma
operação que se limitasse a destruir os instrumentos de extração do
minério. Contudo, ele é taxativo ao apontar que "a ação policial não foi
só no garimpo. Foi dentro da aldeia. E não existia garimpo dentro da
aldeia. Por que atacaram a aldeia, então?"
É certo, então, que esta ação belicosa ofensiva não se explica por si
só, levando em conta o acordo citado acima e o contraponto da narrativa
dos indígenas à versão da Polícia Federal – ou seja, a retificação de
que não houvera "emboscada" alguma dos indígenas contra a operação,
conforme declarou a PF em nota pública (leia),
justificando publicamente o uso da violência e culpabilizando os
indígenas pelo ocorrido. Por que, então, mataram aquele Munduruku? Por
que invadiram e aterrorizaram de maneira brutal e desastrosa toda uma
aldeia?
V. tem uma explicação. "Nós já dissemos [à Funai e ao governo] que
não permitimos estudos de impacto ambiental na nossa terra para
hidrelétricas. A operação da Polícia Federal tem ligação com a nossa
resistência à construção das barragens. Eles querem fragilizar as
comunidades pra ficar mais fácil de construí-las. Mas nós nunca vamos
aceitar trocar nossas terras por migalhas. O que eles fizeram só
fortalece a nossa luta", diz.
I. W. concorda com V.. "Eles acham que, tirando o garimpo, ficamos
sem dinheiro, e vamos ter que aceitar a barragem. Só que nós estamos
firmes de não aceitar barragem na nossa terra". Funcionários do órgão
indigenista oficial que não podem se identificar concordam que a
perseguição se dá por conta da total contrariedade dos Munduruku a
empreendimentos hidrelétricos e hidroviários, e afirmam ser a aldeia
Teles Pires o principal foco dessa resistência.
Os Munduruku se opõem frontalmente à construção de dois complexos de
barragens do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo
federal. São os Complexos Hidrelétricos Tapajós e Teles Pires, conjunto
de treze hidrelétricas previstas para a região.
Parte delas está sendo licenciada pelo órgão federal responsável, o
Ibama; parte pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Mato Grosso. O
complexo Tapajós está todo inventariado, mas apenas duas das sete
usinas com processo de licenciamento abertos, em fase de estudos. No
último dia 21, a Justiça Federal em Santarém proibiu a concessão de
licença ambiental para uma delas, a pedido do MPF-PA, enquanto não forem
realizadas consulta prévia aos índios afetados e avaliação ambiental
integrada de todas as usinas planeadas para a bacia do rio Tapajós no
Pará.
Para viabilizar os licenciamentos das barragens do Tapajós - e o
início da operação das usonas Santo Antônio e Girau, no rio Madeira (RO)
-, a presidenta Dilma Rousseff publicou, em janeiro, uma medida
provisória (MPV) que reduzia sete unidades de conservação em áreas
atingidas pelos empreendimentos. a MPV foi convertida em lei em junho,
dois dias depois da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentável na Rio +20. Tanto a medida quanto a lei foram contestadas
pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, no Supremo Tribunal
Federal.
Indígenas vão a Brasília denunciar ataque da PF
Quase duas semanas depois dos acontecimentos e sem nenhuma resposta,
uma comissão de uma dúzia de Munduruku, Kayabi e Apiaká – entre eles,
quatro testemunhas do ataque – veio a Brasília na última semana. Queriam
reforçar as denúcias das violações diretamente ao Ministro da Justiça,
José Eduardo Cardoso; à presidenta da Funai, Marta Azevedo; à Ministra
do Meio Ambiente, Izabella Teixeira; e exigir a apuração e a punição dos
responsáveis, bem como traçar, por intermédio destas instituições, uma
ação emergencial de reparação aos danos causados.
O grupo não foi recebido por nenhum deles.
Um grupo de assessores foi ter com a comissão. Durante o encontro, os
indígenas narraram os acontecimentos, a partir do testemunho das
vítimas e dos relatos das comunidades.
Ao que o secretário de articulação social da Secretaria Geral da
Presidência, Paulo Maldos, respondeu: "Houve esse problema, vocês estão
aqui trazendo informações pra gente, e a gente respeita, vai levar em
consideração. Se houve problema de conduta errada, vai ser apurado."
Os indígenas questionaram quem realmente havia autorizado a PF a
realizar aquela ação. Um assessor do Ministério da Justiça, Marcelo
Veiga, disse não saber a qual processo judicial se vincula a Operação
Eldorado, mas afirmou aos indígenas que eles estavam executando uma
decisão da Justiça Federal.
"A gente não está jogando pra cima da Justiça Federal a
responsabilidade. Há uma determinaçao da Justiça pra que aquela operação
fosse realizada. Ninguém está fazendo jogo de cena aqui", disse
Marcelo. "Não tem que ficar dúvida de vocês que a atuação e a parceria
da Força Nacional e da Polícia Federal com a Funai [e os indígenas] é de
muito sucesso. Esse foi um caso episódico, que pode ter havido abuso ou
não. [Porque] A PF dialogou anteriormente com as lideranças indígenas
[das aldeias atacadas durante a Operação]. A gente vai ter que apurar".
Funai
Expuseram detalhadamente que, sem os barcos, com o rio contaminado,
sem os instrumentos de caça e pesca e sem a renda gerada a partir dos
garimpos, os indígenas estão numa situação de urgência extrema.
"A Funai está atrasada com suas ações de promoção naquela região", argumentou
a diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, Maria
Augusta Boulitreau Assirati. "E não dá pra fazer, esse ano, nenhuma ação
concreta. Vou ser sincera com vocês. [Mas] cesta básica a Funai jamais
vai se negar [a distribuir], se for constatada necessidade".
"Nós sabemos que o governo tem voltado um olhar pra toda a região ali
do Tapajós e do Teles Pires", disse Maria Augusta. "Vocês nos disseram
aqui diversas vezes que o governo diz que os índios são um empecilho ao
desenvolvimento. Desenvolvimento nao pode ser incompatível com a vida e
com as formas tradicionais de vida dos indígenas", explicou. "Como os
empreendimentos hidrelétricos. Tem que ouvir o que as comunidades
pensam. Da mesma forma que vocês tem que ouvir a visão do governo. Por
que o governo acha importante fazer uma hidrelétrica? Por que o governo
acha importante fazer uma barragem? O processo de licenciamento acontece
nesse sentido e para isso. Que vantagens traz [um empreedimento], que
desvantagens traz?"
Os indígenas perguntaram a eles quem era Paulão. Não souberam responder.
A reportagem não teve acesso à relação detalhada de todos os
participantes da operação, sejam eles da PF, da FN, da Funai, do Ibama
ou de outros órgãos que tenham participado da ação.
As fotos e vídeos utilizados na matéria foram registrados por indígenas Munduruku e Kayabi.
Clique aqui para conferir a galeria completa de fotografias e documentos do caso.
Ruy Sposati, 28 anos, paulistano, é jornalista profissional.
Trabalhou como produtor de televisão, repórter e assessor de imprensa de
sindicatos e movimentos sociais. Assessorou o Movimento Xingu Vivo, em
Altamira (PA), onde ocorre a construção da Usina Hidrelétrica Belo
Monte. Trabalha como jornalista para o Conselho Indigenista Missionário
(Cimi) no Mato Grosso do Sul. Também escreve como colaborador para
publicações como Brasil de Fato, Caros Amigos e Otramerica, entre
outras.
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